Falsos Cognatos: Quando as semelhanças atrapalham


Quem é que nunca se confundiu ao se deparar com uma palavra em inglês que possui semelhança, fonética ou ortográfica, com um termo da língua portuguesa? Atire a primeira pedra quem não foi vítima, pelo menos uma vez, dos falsos cognatos. São muitos os exemplos de palavras que levam alunos de todos os níveis e até mesmo profissionais experientes a cair nas armadilhas criadas pelos "falsos amigos". Tenho certeza de que você já está pensando em alguns deles: exit, eventually, pretend, library, etc.

Sabemos muito bem que o esforço desprendido no início do processo de aprendizagem de uma língua estrangeira é de fato muito grande. Talvez por essa razão, instintivamente, comecemos a unir os vocábulos estrangeiros que são parecidos com alguma palavra de nosso idioma materno como nos casos de term e "termo", part e "parte", vocabulary e "vocabulário", etc. Dessa forma, podemos dar mais atenção àqueles termos cuja memorização é mais trabalhosa, por exemplo, think, ox, learn, tired, bee, obnoxious, flabbergasted, etc.

Não há nada de errado com esse processo, pois, afinal de contas, as duas línguas possuem um número muito grande de palavras parecidas. Muito bem, se há muito mais cognatos verdadeiros do que falsos, qual o motivo de tanta preocupação? Não bastaria decorar uma lista com os principais falsos cognatos e o assunto estaria resolvido? Se o problema fosse só esse, a resposta a essa pergunta poderia até ser afirmativa.

Vale ressaltar que os mal-entendidos causados pelos falsos cognatos não se limitam ao momento em que são traduzidos, pois seus efeitos podem se materializar até mesmo em fase anterior à tradução, ou seja, durante a leitura e a interpretação de um texto oral ou escrito. Portanto, as suas vítimas não se restringem aos alunos iniciantes que ainda não conseguem "pensar" em inglês. Até mesmo os mais fluentes no idioma, que não recorrem à tradução das palavras para compreenderem um texto, podem eventualmente se confundir.

Os falsos cognatos podem ser divididos em duas categorias: puros e eventuais. Os primeiros são termos que nunca significam o que parecem querer dizer. Por exemplo, library não é "livraria", pretend não quer dizer "pretender", exit jamais significa "êxito", jest nunca é "gesto", straight não quer dizer "estreito", entre muitos outros. As palavras que se enquadram no segundo grupo, também chamadas de polissêmicas, podem eventualmente ser traduzidas pelo termo cognato em português. Há, entretanto, outros significados importantes que merecem destaque. Por exemplo, service pode significar "serviço" mas também "culto (religioso)", union quer dizer tanto "união" quanto "sindicato", justice pode ser "justiça" e "juiz", Jordan significa "rio Jordão" e "Jordânia", o verbo introduce pode ser traduzido por "introduzir" e "apresentar", bachelor é "bacharel" e "solteiro", etc. Nem sempre a acepção cognata é a mais comum embora, na grande maioria das vezes, seja a escolhida pelo brasileiro. O outro significado acaba geralmente sendo preterido.

A influência nem sempre é nociva
A segunda metade do século XX marcou o período em que a língua inglesa passou a exercer influência significativa sobre a língua portuguesa, muito maior do que a exercida por outros idiomas. As razões dessa ascensão do inglês ao status de língua universal foram amplamente debatidas em uma série de artigos publicados recentemente nesta revista. Dentre elas, pode-se destacar os predomínios econômico, político, cultural, técnico e científico das nações de língua inglesa e a evolução tecnológica sem precedentes dos meios de comunicação. Não há dúvida de que ao longo da história as línguas influenciaram e sofreram influência de outros idiomas, haja vista a presença de termos oriundos do latim, do grego e do francês, entre outras, no português falado nos dias de hoje. Para citar apenas alguns empréstimos do século passado, há os casos de "futebol", "abajur", "buquê", já aportuguesados, e "milk-shake", "shopping center", "mouse", etc., que foram assimilados mantendo-se a grafia original e já estão dicionarizados. O que mudou na verdade foi a velocidade com que essa influência passou a ocorrer. Transmissões via satélite, Internet, TV a cabo, telefonia móvel, e-mail, vídeo-conferência, etc. estão tão presentes no cotidiano dos grandes centros urbanos que, por vezes, nos esquecemos de que eles não existiam poucas décadas atrás. Conseqüentemente, termos da língua inglesa aportam em nosso idioma com freqüência e volume nunca observados anteriormente.

Não defendo a "reserva de mercado" da língua portuguesa, pois tentar engessar um idioma é o mesmo que condená-lo à morte. Não sou purista radicalmente contrário à presença de neologismos e não gostaria de deixar essa impressão. Gosto mesmo é de "futebol" e não de "ludopédio" nem de "balípodo". Gostemos ou não de transformações, as línguas irão acompanhar as mudanças das sociedades e das culturas em que estão inseridas. Por outro lado, mesmo correndo o risco de parecer incoerente, não creio que devamos aceitar passivamente essa onda, quase maremoto, de estrangeirismos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Acredito que precisamos estar sempre atentos para detectar as falsas semelhanças que podem induzir a equívocos de comprensão de texto e fazer com que sejam cometidos deslizes involuntários.

Ninguém, suponho, confunde shopping com "chope" mas, dentre os vocábulos da língua inglesa que são incorporados ao nosso idioma, os que possuem semelhança com termos de nosso idioma têm grande potencial de causar confusão. Os efeitos causados pela presença de termos da língua inglesa em nosso idioma podem ser divididos em quatro grupos. Destes, apenas um pode ser prejudicial à nossa língua:

Revitalização de palavras menos comuns
O substantivo "acurácia" passou a dividir espaço com "precisão", "congratular" está quase tão conhecido quanto "elogiar", o termo "audiência" passou a ser empregado mais freqüentemente como sinônimo de "público" ou "platéia", "encorajar" é quase tão comum nos dias de hoje quanto "incentivar". É claro que devemos o emprego mais freqüente desses termos da língua portuguesa às palavras accuracy, congratulate, audience e encourage.

Criação de novas palavras
Em geral, não há tradução consagrada em português para os vocábulos que descrevem inovação científica ou tecnológica. Os exemplos são "software", "air bag", "scanner", entre muitas outras. É evidente que pode haver mais de uma alternativa aceitável de tradução para essas palavras. No intuito de se evitar eventuais ambigüidades, entretanto, técnicos, cientistas e profissionais de uma determinada área acabam adotando a forma original. Como o acesso a manuais, documentos, trabalhos científicos, etc. em inglês está cada vez mais facilitado, esses termos se consagram em inglês mesmo e, se são usados pelos especialistas, nenhum outro indivíduo se atreve a modificar o que já está enraizado entre os conhecedores do assunto. Acho que não há muito o que possa ser feito, pois os termos já estão bastante difundidos. Também acredito que esse não é um problema grave para a nossa língua. Esse é o tipo de influência que pode ser classificada, muitas vezes, como benéfica.

Modismo
O emprego na língua portuguesa de palavras inglesas para as quais há tradução consagrada em português, por exemplo, delivery, diet, low profile, etc. não passa de modismo grotesco e infundado. As pessoas que as usam têm a ilusão de estar na moda ou acham que estão demonstrando inteligência, bagagem cultural, etc. Trata-se, na verdade, de comportamento que denota afetação tola e descabida. O que há de errado com "entrega em domicílio", "dietético" e "discreto"? Não estou nem falando das asneiras lingüísticas cometidas por quem quer demonstrar ter o conhecimento que não tem. Você nunca ouviu uma emergente dizer algo do tipo "vou ter aula com o meu personal training"? Ela não sabe que chique é falar duas ou mais línguas, mas sempre uma de cada vez! Em geral, o uso de vocábulos e expressões redundantes não resiste ao teste do tempo e não chega a ser nocivo para o idioma pátrio.

Criação de significados esdrúxulos
Mal maior, a meu ver, ocorre quando brasileiros passam a traduzir incorretamente termos da língua inglesa e acabam deturpando o significado de vocábulos da língua portuguesa. Um exemplo disso é o que aconteceu com a palavra "consistente". Pelo fato de consistent também significar "coerente" e "constante", o adjetivo "consistente" passou a ser empregado com esses sentidos. É comum vermos a expressão "informações consistentes" quando se quer dizer "informações coerentes". Esse fenômeno ocorre, na minha opinião, devido a dois fatores: falta de conhecimento de nosso idioma e a velocidade com que as palavras em inglês transitam pelo mundo hoje em dia. Há inúmeros exemplos nessa categoria: education (muitas vezes "educação" é o termo usado quando se quer dizer "escolaridade"); plant ("planta" é quase sempre a palavra usada na tradução quando se quer dizer "fábrica" ou "usina"); industry (usa-se "indústria" em situações em que "setor (econômico)" seria mais indicado); application ("aplicação" é por vezes a opção adotada nos casos em que "requerimento" seria a palavra ideal); freeze (já ouvi alguém empregar o verbo "frisar" com o sentido de "congelar"!), entre muitos outros. Estou cansado de ouvir gente dizendo que vai "introduzir" alguém quando se quer dizer simplesmente "apresentar" uma pessoa!

Os termos estrangeiros costumam desembarcar na língua portuguesa por meio das pessoas bilíngües. Por esse motivo, nós, os bilíngües profissionais, temos uma responsabilidade ainda maior do que a dos amadores. Professores em geral, mais notadamente os de inglês e de português, tradutores, intérpretes e outros profissionais da área desempenham papel preponderante na formação lingüística e cultural de grande parte da população. Assim como os escritores, estamos constantemente reinventando a língua de nosso país. É evidente que não somos os únicos a desempenhar essa tarefa. Todos, em maior ou menor grau, contribuem para que a língua portuguesa se mantenha viva e vibrante. O único diferencial é que nós estamos na linha de frente e devemos prestar especial atenção àquelas palavras que possuem semelhança com outros termos da língua portuguesa, pois elas são armadilhas muito bem dissimuladas.

Embora acredite que a soberania nacional não está ameaçada por uma invasão de estrangeirismos, metaforicamente, podemos nos considerar guardiões da língua portuguesa. Não me refiro, é claro, a um grupo radical que impõe a repressão xenófoba, castradora e intransigente mas sim a profissionais que, com equílibrio, apontam onde estão os excessos, as redundâncias, os modismos tolos, enfim, o que é supérfluo. Podemos e devemos oferecer orientação e outras alternativas de tradução para os mais incautos. Sem paranóia.


Cf
. Falsas Gêmeas
Cf. Falsos Cognatos
Cf. Resenha do "Dicionário das Palavras que Enganam em Inglês"

O autor
Ulisses Wehby de Carvalho é Intérprete de Conferência e autor dos livros O Inglês na Marca do Pênalti (Disal Editora, 2003), Dicionário das Palavras que Enganam em Inglês (Campus/Elsevier, 2004) e Dicionário dos Erros Mais Comuns em Inglês (Campus/Elsevier, 2005). Veja currículo completo.